O HOMEM QUE DESCOBRIU O SERTÃO

31/12/2009 22:52

O homem que descobriu o sertão


Em 2009 completam-se cem anos da morte trágica de Euclides da Cunha, escritor brasileiro cuja obra-prima, Os sertões, não encontra paralelos na história da literatura do nosso país. Misto de fazer literário, texto jornalístico, historiografia, análise geográfica e compêndio de antropologia, Os sertões foi um dos romances de maior sucesso editorial da literatura brasileira, tendo mais de cinquenta edições desde seu lançamento.

A juventude de Euclides
Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha, neto de um traficante de escravos de mesmo nome, percorria fazendas do interior do Rio de Janeiro fazendo contabilidade. Em uma dessas viagens, conheceu Eudóxia Alves Moreira, com quem se casou. Um ano depois, em 1866, nascia, em Cantagalo (RJ), Euclides Pimenta da Cunha, primeiro filho do casal, que mais tarde viria a ter também a menina Adélia.
Após a morte da mãe, Euclides e Adélia teriam uma vida muito agitada, sendo mandados de um lado para o outro para viver com parentes. A infância de Euclides da Cunha foi marcada por esse nomadismo, que fez com que o menino tivesse de passar por inúmeros estabelecimentos de ensino até, aos dezenove anos, se matricular na Escola Politécnica para estudar Engenharia, curso que precisou ser abandonado devido às precárias condições financeiras da família.
Euclides, então, optou por se matricular na Escola Militar da Praia Vermelha.

Embora nunca tenha se interessado pela carreira militar, o jovem optou pelo curso porque a escola pagava salários, o que a tornava um reduto de bons alunos que eram apenas remediados em termos de dinheiro. Além disso, havia alojamento e comida.
Na escola, seus escritos denotavam uma alma romântica, preocupada com o que os processos de modernização poderiam trazer para a natureza. Segundo ele, as regiões urbanas levavam os homens a se baterem uns contra os outros e a se desviarem do caminho da solidez de caráter. Nessa época escreveu seus primeiros poemas, sob o títulos de Ondas - primeiras poesias de Euclydes Cunha, alguns dos quais acabaram n'O Democrata, pequeno jornal escolar. Apaixonado pela Revolução Francesa , Euclides dedicou sonetos a Danton, Marat, Robespierre e Saint-Just; mas o grosso da produção poética só veio à luz depois de sua morte. Imbuído desse comportamento romântico e idealista, Euclides sempre foi um homem solitário e de uma honestidade e correção que muitas vezes lhe valeram problemas e desentendimentos.

Na escola militar, Euclides foi aluno de Benjamin Constant , de quem herdou os ideais positivistas de Auguste Comte que o influenciariam por toda a vida. Apesar de ter dificuldades para se adaptar à rigidez da escola militar, estudou feito um louco nos dois primeiros anos do curso, esperando se tornar aluno-alferes. O posto era reservado para aqueles que obtivessem as melhores notas e dava ao aluno uma farda especial e o direito de receber um soldo maior, dinheiro de que Euclides, pobre, precisava muito. No entanto, desde aGuerra do Paraguai , o Governo Imperial havia congelado os salários dos militares e deixado de fazer as devidas promoções que abririam postos para que os soldados rasos pudessem, também, ser promovidos. E foi movido por essa injustiça política, denunciada em vários jornais da época, que Euclides resolveu protestar e se tornou famoso em toda a corte. Divulgação

Em novembro de 1888, seis meses após a assinatura da

Lei Áurea , chegou ao Rio de Janeiro Lopes Trovão, um famoso partidário republicano. Os alunos da Escola Militar, que ficava na praia, saudaram a chegada do homem com vivas, o que foi encarado pelo diretor, o general Clarindo de Queirós, de orientação monarquista, como indisciplina. Para impedir que os alunos pudessem tomar parte nos eventos previstos para a chegada de Trovão, Queirós marcou uma inspeção das tropas pelo ministro da Guerra, Tomás Coelho, para o fim de semana. Dessa forma, os alunos não poderiam deixar a escola para participar dos eventos planejados em homenagem à chegada do republicano.

Os alunos foram organizados para a inspeção do ministro, e quando este passou perto de Euclides, o futuro escritor saiu do corpo da tropa, pegou seu sabre e tentou quebrá-lo no joelho, mas a espada não se partiu. Euclides, então, jogou a arma no chão. Tomás Coelho, querendo colocar panos quentes na situação, afirmou que o aluno estava com os nervos alterados devido ao excesso de estudos e mandou que ele fosse levado à enfermaria. Em seguida, vários alunos começaram a dar vivas a Lopes Trovão, e eram tantos os gritos que não se pôde descobrir de onde eles provinham. Em poucos dias, Euclides foi desligado da Escola Militar sob o pretexto de incapacidade física (assim como sua falecida mãe, Cunha era tuberculoso), alegado quando se desejava evitar cumprir a pena de enforcamento, prevista para casos de desrespeito aberto a superiores.

A tentativa do ministro da Guerra e da direção da escola de abafar o protesto de Euclides não funcionou: todos os jornais da época noticiaram o ocorrido, juntamente com reportagens que denunciavam a recusa do governo de regularizar as promoções dos militares e as más condições em que os alunos eram mantidos na escola. Toda uma polêmica foi criada em torno do episódio, e algumas publicações chegaram a dizer que Euclides havia partido para cima do ministro com o sabre em punho. Anos mais tarde, o escritor contou que havia largado a espada o mais próximo possível de seus próprios pés, para que não houvesse feridos, mas que o protesto era parte de uma rebelião combinada pelos alunos para prender o ministro e proclamar a república. No entanto, no momento de agir, grande parte dos conspiradores desistiu e somente Euclides teve coragem de seguir em frente para, ao menos, protestar.

Após o episódio da Escola Militar, Euclides foi chamado para fazer suas primeiras contribuições em jornais, começando, a convite de Júlio Mesquita, no A Província de São Paulo, que daria origem a O Estado de São Paulo. Propagandista da República, o corpo editorial do jornal imaginou que um jovem cuja carreira militar havia sido destruída porque ele ousou exibir seus ideais republicanos seria o garoto-propaganda ideal do novo regime. Mesmo depois da proclamação da República, Euclides manteve-se como crítico do sistema, ao perceber que os militares não aplicavam no governo os interesses do povo, mas os seus próprios.

Apesar dos problemas na Escola Militar, Euclides matriculou-se para o curso superior da Escola de Guerra e, no mesmo ano em que se formou, casou-se com Ana Emília Ribeiro, tendo perdido sua primeira filha, Eudóxia, aos poucos dias de vida. Euclides odiava a carreira militar e os empregos públicos, mas passaria a vida inteira migrando de um para o outro. Seu real desejo era integrar o corpo docente da Escola Politécnica, mas, quando estava para ser aberta, Euclides escreveu um artigo criticando fortemente o currículo do estabelecimento de ensino que, segundo o escritor, era vago e não forneceria formação sólida aos alunos. Devido a esse artigo, Euclides jamais conseguiu ingressar como professor da escola, mesmo tendo feito vários concursos para tanto. Euclides só conseguiu dar aulas em uma grande escola quase no fim da vida, quando passou a lecionar no Dom Pedro II .

Em 1895, pediu licença do Exército por não suportar mais manter as aparências, alegando-se fisicamente incapacitado. "Dei parte de doente - considerando-me incapaz para a vida militar, incapaz fisicamente porque moralmente creio-me incompatível de há muito com ela". A partir daí, Euclides começou a exercer o ofício de engenheiro como funcionário público até que, terminando sua licença, em 1896, acaba por pedir reforma da carreira militar.
Quando a Guerra de Canudos teve início e as forças comandadas pelo Coronel Moreira César foram derrotadas pelos fiéis de Antônio Conselheiro , Euclides escreveu e publicou um artigo chamado A nossa Vendeia, comentando a derrota das forças do governo e vaticinando a vitória dos militares. Os republicanos brasileiros sempre paralelizaram a Revolução Francesa e a Proclamação da República do Brasil, apesar de todas as diferenças gritantes. A Rebelião da Vendeia foi o episódio da Revolução Francesa em que os camponeses da distante província da Vendeia, instados pelos nobres e pelo clero, se revoltaram contra a república e iniciaram uma violenta guerra civil.

Anos depois, quando da publicação de Os sertões, o próprio Euclides rejeitou sua comparação de Canudos à Vendeia, alegando que a primeira foi uma rebelião de caráter muito mais místico e religioso do que monarquista e político.
Esse artigo chamou a atenção de Júlio Mesquita, que anos antes havia introduzido Euclides da Cunha na imprensa, e convidou o escritor para uma nova contribuição: ir a Canudos para cobrir a guerra, enviando artigos e notícias para o Estado de São Paulo. Euclides aceitou o convite, e Júlio Mesquita, influente político, conseguiu que ele fosse nomeado adido ao Estado- Maior, já que o escritor era tenente reformado. Nessa condição,Euclides estaria à frente de todos os outros jornalistas que cobriam o conflito, já que teria acesso aos planos militares e poderia contatar em primeira mão os soldados, privilégios que não eram concedidos aos demais correspondentes.

Além dessas permissões especiais, Euclides da Cunha tinha outra vantagem sobre seus companheiros de cobertura da guerra: um vasto conhecimento sobre os elementos naturais, adquirido em anos de estudo para os concursos da Escola Politécnica. Assim, os textos que o correspondente enviava para o jornal eram panorâmicos e não só narravam o conflito, mas davam ao leitor um perfil geográfico de toda a região em torno de Canudos. Além disso, sendo Euclides um intelectual, havia também uma análise antropológica do sertanejo, extremamente influenciada pelo determinismo de Hippolyte Taine.

Ao chegar à Bahia para cobrir a quarta e última expedição da Guerra de Canudos, Euclides se assustou com a falta de todas as coisas no lugar: os correspondentes dos outros jornais estavam irreconhecíveis, as barbas crescidas, usando roupas típicas dos sertanejos; nas palavras do próprio Euclides, aqueles homens estavam "ajagunçados", enquanto ele mesmo ainda se vestia de terno branco e camisa de seda. As condições de vida ali, para um homem que viera da corte, eram quase insuportáveis, faltando até mesmo água para o banho.
Canudos era uma comunidade que vivia sob a direção espiritual de Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido como Antônio Conselheiro, um sertanejo letrado que se voltara de forma fanática para a religião por não poder com seus problemas pessoais. Devido à seca e ao desemprego crônico na região, causado por uma série de latifundiários que haviam tomado as terras dos pequenos proprietários, um grande número de sertanejos migrou para o vilarejo de Canudos, onde eram acolhidos por um Antônio Conselheiro repleto de crenças sebastianistas , messiânicas e milenaristas e a promessa de que os habitantes do lugar seriam salvos do flagelo da seca. De Canudos, Euclides escreveu e enviou trinta e quatro artigos e cinquenta e sete telegramas para O Estado de São Paulo.

Antonio Conselheiro era um monarquista, mas os fazendeiros e o clero da região aumentaram a proporção dos fatos e espalharam o boato de que o pregador queria acabar com a república recém-instaurada. Exigiram também que o governo tomasse uma atitude que freasse o crescimento do povoado, que Conselheiro rebatizara de Belo Monte, apesar de o lugar ficar numa baixada cercada por colinas. Pressionado pelas elites da região, que afirmavam que o desenvolvimento do povoado constituía um perigo para o povo e o regime, o governo enviou tropas para combater a ameaça, três delas tendo sido derrotadas pelos adeptos da seita de Conselheiro. Informado através dos jornais do que acontecia no interior baiano, o povo brasileiro não conseguia acreditar que um bando de fanáticos religiosos pudesse ir de encontro às forças do exército e vencê-las, e instaurou-se um pânico que contribuiu para que os boatos que serviam para justificar a situação de calamidade se reforçassem.

Mais tarde, Euclides desmentiria tudo isso em Os sertões: os seguidores de Conselheiro eram completamente desprovidos de objetivo político, sendo seu monarquismo de origem mística e religiosa. Para Euclides, a Revolta de Canudos nada mais foi que o resultado da introdução apressada da República numa terra que ainda imitava os modos europeus. Apesar de ter sido um grande entusiasta e militante do novo regime, o escritor não tardou a decepcionar-se com ele, que, assim como a monarquia, não trazia a participação efetiva do povo nas decisões políticas e beneficiava o interesse de poucos em detrimento do bem maior.

"Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de montanhas. Era um parêntese; era um hiato; era um vácuo. Não existia. Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava."
Depois de ter passado fome e privação de água em Canudos, Euclides voltou para a casa adoentado e deprimido e passou quatro anos escrevendo aquela que seria sua obra-prima. Nos artigos que enviava para O Estado de São Paulo, o escritor exaltava a república e procurava não enfocar uma visão muito próxima ao terror da guerra. Só quando o conflito acabou e o escritor se viu livre para escrever seu livro foi que ele se decidiu por colocar a verdade no papel e acusou tanto o governo quanto o exército de genocídio.

O contrato de Euclides com o jornal previa que ele primeiro escreveria as matérias e as enviaria para serem publicadas e depois faria um livro. No entanto, a última parte não foi cumprida, e o escritor, desejoso de publicar sua obra, precisou tirar do próprio bolso para arcar com os custos da edição. Em dezembro de 1902 saiu a primeira leva de exemplares de Os sertões, com emendas tipográficas feitas a canivete pelo próprio autor, nas madrugadas antes do livro sair. A edição de seiscentos exemplares que, segundo o editor, traria prejuízo, foi um sucesso de público e de crítica, vendendo metade da tiragem em apenas oito dias.

Segundo Roberto Ventura, autor de Euclides da Cunha - Esboço biográfico, "O livro surpreendeu tanto pelo cuidado estilístico e literário, com uma escrita altamente expressiva e imagética, quanto pela amplitude dos assuntos tratados. Além de relatar a guerra, o engenheiroescritor mostrava ambições de historiador e de cientista, abordando o clima e a vegetação do semi-árido, a raça, o homem e os costumes do sertão, a formação de Canudos e a biografia do Conselheiro".
O tema central de toda a obra de Euclides é a revisão do regime republicano. O escritor tinha planos para um livro sobre a Revolta da Armada, que também havia presenciado, mas desistiu quando foi destacado para chefe da expedição do Alto Purus, na divisa entre o Acre e o Peru. Empolgado com a empresa, voltou seus estudos naturalistas para a Amazônia e iniciou uma obra chamada Paraíso Perdido, numa referência ao poema de John Milton também nunca terminada.

Quando precisou partir para a expedição, teve que pedir que seus pais abrigassem sua esposa e seus dois filhos, Solon e Euclides, em sua fazenda, pois Ana passava por uma fase de conflitos com sua própria família. Além disso, uma depressão parecia se apoderar da esposa do escritor, e a relação dos dois ia declinando pouco a pouco. Ana, no entanto, preferiu permanecer no Rio de Janeiro.
Euclides da Cunha Foi eleito para a Academia Brasileira de letras aos 37 anos, com uma enorme quantidade de votos. Quando Machado de Assis morreu, em 1908, o autor de Os sertões, acadêmico desde 1903, ocupou provisoriamente o cargo de presidente de ABL. Sua cadeira era a mesma de Castro Alves, poeta que havia sido muito admirado pelo pai de Euclides, que tivera o poema "À morte de Castro Alves" publicado na segunda edição (póstuma) de Espumas Flutuantes.

Sobre a Amazônia, Euclides escreveu quase tanto quanto sobre o sertão, mas sua obra desse período é desconhecida do grande público. De volta ao Rio de Janeiro com a saúde comprometida pela malária e a tuberculose, ocupou-se de escrever sobre a Amazônia até ser assassinado pelo cadete Dilermando de Assis, amante de sua esposa, em 1909.

FONTE: Revista Literatura